sexta-feira, 31 de julho de 2015

arrancar as unhas. os cedros



tenho monstros debaixo
da cama, crianças com
cutelos e bonecas sem
cabeça a rebolar pelas
chamas. as cinzas do
tempo em que os
monstros e as crianças
dançavam atrás do
cortinado verde;
em que o pânico
sem sentido se afogava
em que as chamas
se apagavam no lugar
em que a lâmina
reflectia o medo
atrás das costas;
os vidros a derreter
com o calor dos teus
olhos,
ainda.
hoje é segunda-feira;
é quinta. é a dor que
se apaga com cinzas
mas o vento.   

quarta-feira, 29 de julho de 2015

destilação de perdigueiros



no terceiro acto já sabias
distribuir o ódio e
o amor pelo tempo que
sobrava entre cada fala.
a cena fechava com
a ferrugem a arrastar-se
sobre a janela
e os dedos entalados
serviam a dor suficiente;
o mergulhão que se
procura em círculos;
que deixa o corpo
dançar sobre a turbulência
de um charco
tépido. 

não tenho força para
segurar o garfo e a
faca; para levantar a
mão sobre o prato
deslavado. a casa
denuncia um abandono
sistemático e as plantas
mortas entre as pernas;
não só o sexo que sobra
de um vértice; de uma
intersecção de vontades
inoportunas; de tempo
e detergente deitados
sobre as tigelas de
mármore; os livros
e o pó sobre os
candeeiros a libertar
partículas sobre a luz
de uma rusga; um sorriso
em compassos tristes -
apanágio do cinema francês -
no teu regaço, eventualmente,
em que se morre
em contratempo
contra-tempo
contra tempo

terça-feira, 28 de julho de 2015

Ocupação estética do espaço



o braço mecânico da
minha mãe acenava
para dentro de um
movimento sem
retorno. esperava
na ombreira da
porta; as fotografias
rasgadas sobre a
cómoda e o tempo
a passar pelo filtro
do cigarro.
não demorei os olhos
sobre o desespero.
chorei um pouco
enquanto partia
e desfiz o nó
dos sapatos.
atei o pescoço
ao pulso esquerdo.
esperei que o
coração se ocupasse
do espaço que fica
entre o corpo
degradado e um
sorriso (sempre)
demasiado bonito.

afasto-me devagar
para que nunca
precises saber o meu
nome; o som da agonia
e da paixão
em simultâneo
no fim das palavras todas.

sábado, 11 de julho de 2015

conferência lógica para matemáticos de vidro

o miúdo de calções de sarja
risca a parede com duas ou
três palavras imperceptíveis;
desenha sobre o eco da própria
voz o sofrimento que ninguém
vê; o silêncio que não se ouve.
embrulha um pedaço de pão
na camisa rasgada e tenta
dominar as lágrimas com a
sujidade das mãos; as unhas
enegrecidas de um tempo em
que foi necessário arranhar o
ladrilho da droga que soçobra
os olhos a um pai e lhe conduz o
sangue pelos cantos da boca
com a delicadeza de uma mulher;
um corpo que dança a lâmina de
um animal desfeito.
o miúdo de calções de sarja
gosta de subir a árvore mais
alta do bairro e olhar para os
pássaros mortos dentro do
ninho. gosta de gritar alto
que, visto de cima, todos os
corações se assemelham
a um incêndio pequeno no
peito e no cérebro;
que talvez já seja tarde
para encontrar uma casa com
um bocadinho de amor; duas ou
três palavras perceptíveis para
riscar na parede vazia.
as unhas enegrecidas a arranhar o
desespero da criança acabada
antes de tempo. que olha para
dentro dos pássaros como se
viajasse para dentro de si
e se fosse implodindo
devagar. uma bicicleta com
ferrugem a descansar a parede
de um quarto riscado
com uma criança; o que resta dela;
em troca de meio quilo de haxixe.